De tempos em tempos, certos debates em torno do uso das palavras parecem meros modismos ou apenas alguma exigência “politicamente correta”. Ainda assim, é fato que precisamos dizer exatamente o que queremos quando usamos determinadas palavras. E que precisamos saber explicar o uso que estamos dando a elas ao empregá-las.
Quando não levamos isso em conta, quase sempre, criamos problemas incontornáveis de comunicação. O que as pessoas entendem, por exemplo, pelo que chamam de “aborto” varia muito para diferentes culturas, profissões, povos ou religiões, épocas ou lugares. Quase sempre se acaba discutindo sobre compreensões diferentes. Por isso mesmo, debater certos temas é uma coisa bastante complicada.
Nas duas últimas eleições para presidente na Argentina e na reeleição de Dilma Rousseff no Brasil, o tema do aborto ocupou boa parte do foco nos debates eleitorais e por diferentes razões. Em todos os casos, as pessoas pareciam estar debatendo ideias de mundos diferentes o que impedia que elas entrassem em consenso. Discussões assim não fazem o menor sentido e apenas geram confusões.
A palavra ‘escravatura’, em Portugal, é um exemplo desse tipo de confusão. Ao contrário do português do Brasil, em que dizemos “comércio de escravos” para nos referirmos a uma prática vivida pela sociedade de dois séculos atrás, de compra e venda de negros, em Portugal é usada a palavra “escravatura”. Para os portugueses, escravatura difere de escravidão, palavra que quer dizer sobre a prática de manter os negros em condição de trabalho escravo, o que era algo bem diferente, para os portugueses, do que comercializar pessoas.
Engana-se quem pensa que as palavras são criadas apenas para dar nome ao que existe. Elas também são usadas com propósito ideológico, para esconder ou disfarçar alguma realidade. Portugal, por exemplo, usou por muito tempo a palavra ‘escravatura’ para se referir a si próprio como país que aboliu o comércio de escravos. Só que o termo gerou ambiguidade e ficou parecendo, propositalmente, que a abolição da escravidão, em Portugal, tivesse ocorrido bem antes do que de fato aconteceu, pois eles se vangloriavam de ter abolido a escravatura e não a escravidão e esta confusão era bastante positiva para os interesses nacionais. Tratava-se de uma estratégia ideológica.
Terry Eagleton, um crítico britânico da cultura, buscou definir ideologia como um processo de produção de ideias, crenças e valores. Nesse sentido, para ele, ideologia filia-se a uma compreensão de visão de mundo, não importando se falsa ou verdadeira e tem a ver com a forma como coletivamente organizamos tudo que consideramos de algum modo simbólico: as palavras, por exemplo.
Ideologias dominantes trabalham no empenho de legitimarem certos usos de palavras para com isso manterem-se no poder. O curioso, é que esta prática é disfarçada. O sociólogo Zygmunt Bauman chegou a explicar muito bem isso: “a conduta humana é guiada pelas ideias que as pessoas têm” e que se formam, segundo ele, “por sensações”. Acontece que as sensações podem mesmo ser enganosas ou distorcidas.
*A notícia completa está na versão impressa do Jornal da Manhã.