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sexta-feira, abril 19, 2024

O imaginário como mercadoria

Se a pandemia modificou o modo como enxergamos nossas necessidades e nossas vidas, não é menos verdade que promoveu uma revolução ainda maior no que já vinha acontecendo, lentamente, na cabeça de milhares de pessoas quanto aos seus desejos de consumo. Passamos a encarar o fato de que não precisamos mais de tantas coisas materiais como pensávamos, para sermos felizes. Muitas empresas passaram a olhar, então, com mais atenção aos novos comportamentos dos consumidores e, assim, uma verdadeira indústria que já vinha se firmando, assumiu definitivamente todo o seu protagonismo: a indústria do imaginário. Os objetos de consumo passaram a ser, também e principalmente, cada vez mais virtuais.

Pesquisadores dos campos da Sociologia, da Comunicação e da Cultura vêm criticando, há décadas, e desde o século passado, a forma como nos deixamos ‘colonizar’ pelo sistema de consumo do capitalismo: vivemos para pagar o que achamos que precisamos. Mas essas nossas necessidades de consumo vêm também mudando.

Durante a pandemia da covid-19, muitas empresas faliram e alguns intelectuais chegaram a cogitar que o sistema capitalista teria chegado ao seu esgotamento. Só que o surpreendente aconteceu e o sistema encontrou, de novo, outras formas de transformar o trabalho, fazendo surgir o capitalismo de plataformas, com a cultura de consumo se apropriando do que é apenas “visível”. O valor da propriedade passou a ter um significado diferente. Carros não são mais apenas comprados, por exemplo, mas também usados por assinatura. As pessoas mudaram a forma de trabalho, de mobilidade, de lazer e entretenimento. Pagamos cada vez mais por sensações, por experiências como se fossem reais. É a universalização de uma cultura do simulacro, tão bem definida por Baudrillard nos anos 1990 e que inspirou a série de filmes Matrix.

Teóricos como Eugênio Bucci, professor da Universidade de São Paulo, chamam agora esta nova experiência de consumo como a “superindústria do imaginário”. Esse sistema, na sua definição, expande potencialmente o que antes era uma mera questão de lucro e do capital em termos materiais. E o que compramos nessa nova era são tão somente aparências e os efeitos dos produtos, sem propriamente levá-los nas sacolas. A pós-modernidade veio para valorizar o parecer ter e o parecer ser. Foi uma resposta também para fazer o círculo de produção e circulação de mercadorias voltar a girar, quando por falta de recursos, a queda no consumo ameaçava a sobrevivência do próprio sistema.

Nossas vidas estão sendo, por conta disso, absolutamente transformadas. Tudo ao nosso redor são, cada vez mais, apenas imagens, e o tempo todo alimentadas pela fantasiosa e ilusória gratificação de consumo. Estamos comprando moedas virtuais e investindo em um mundo imaterial, mas absolutamente real, embora não nos tornemos, necessariamente, através disso, literalmente mais ricos. O metaverso já existe, na verdade, bem antes do que anunciado por Zuckerberg. Compramos o que alimente nosso pensamento e produza algum êxtase a corações e mentes, como num jogo. Apostamos nossas economias no que é intangível. A roleta do cotidiano se tornou a diversão de brincar de mundo, como num game (jogo).

Sempre gameficamos nossas vidas, na verdade. Fizemos de muitas coisas, um jogo – e a única novidade é que, agora, passamos a nos divertir e encontrar sentido em simular que o fazemos: cidades virtuais, negócios virtuais, vidas virtualizadas que custam dinheiro. É claro que num Brasil em que 30 milhões de cidadãos passam fome, tudo isso soa mera extravagância, um prazer excêntrico de quem tem dinheiro e pode consumir, quando milhares podem comprar cada vez menos. Mas o fato é que se antes investíamos em coisas materiais todo nosso dinheiro, hoje, novas gerações investem no que veem, compram o que não podem pegar nas mãos e se divertem sem que o corpo participe totalmente da experiência.

As curtas viagens ao espaço são uma metáfora perfeita desse nosso tempo, agora organizadas e espetacularizadas para apreciarmos, ainda que por poucos minutos, o que entendemos como sendo uma realidade, como quando o mundo é visto pelo lado de fora. São curtos passeios que começam a ser cada vez mais frequentes e ainda que a um custo estratosférico, assumido por excentricidades como Bezos ou Musk, empresários multibilionários norte-americanos. A previsão é de que, em 2040, esses mercados de diversão serão o negócio mais lucrativo do mundo, tanto quanto hoje faturam as indústrias de petróleo.

Para quem sonha consumir ao menos a sensação desses novos produtos, o que conta mesmo é a chance, afinal, de “ver”, mais até do que de ter ou ser. E por essa oportunidade, paga-se caro (quem pode, claro) e mesmo que por alguns segundos, da janelinha de um foguete, não importa. Essa lógica se expandiu em termos populares para uma cultura da tevê por mensalidade e paga-se pelo olhar, consome-se a imagem: a do planeta por fora tanto quanto a de uma marca que, de outro modo, não se possa comprar de fato, ou a de um filme exclusivo, de uma viagem inalcançável, ou até mesmo, do terror das guerras midiatizadas aos funerais espetacularizados, como o da Princesa Daiana, em agosto de 1997 ou da Rainha Elizanteh, este ano – excursões foram organizadas e negociadas como mercadoria, acredite. É a instância da imagem, com as palavras passando a coadjuvantes. Melhor demonstrar, nesse mundo novo, todo nosso dizer por um emoji (aquelas caretinhas digitais representando emoções e sentimentos) do que escrever em texto o que sentimos e queremos expressar. É a palavra cedendo espaço para o que é apenas figura e representação.

*A notícia completa está na versão impressa da revista Stampa

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